DIVISÃO DE EQUIPE TÉCNICA

 

DEPARTAMENTO DE COMISSÕES

 

 

 

 Proposições autorizativas – vício de iniciativa – inconstitucionalidade manifesta

 

 Estudo realizado por Jorge José da Costa

  05/2001

 

 

 

 

 

OBJETO

 

 

 

O Senhor Diretor da Divisão de Equipe Técnica solicitou a elaboração de estudo temático acerca da constitucionalidade, alcance e eficácia das denominadas “proposições autorizativas”.

 

 

 

I – PROPOSIÇÕES E PROPOSIÇÕES AUTORIZATIVAS

 

 

 

Proposição, no âmbito parlamentar, é o texto sistematizado, apresentado por quem possui competência legal para iniciar o processo legislativo. Proposição também é, na Assembléia Legislativa de São Paulo, a designação genérica das diversas espécies de projetos de textos legais, discriminados nos incisos I a V do art. 21 da Constituição do Estado, que são submetidos à apreciação do Plenário.

 

As chamadas “proposições autorizativas” são projetos de textos legais, submetidos à apreciação do Plenário, que se caracterizam por apresentar comando normativo em que, segundo seus defensores, não há a obrigatoriedade de sua execução por parte do Chefe do Poder Executivo. Essa característica está consolidada em fórmula que se tornou clássica: “Artigo 1º – Fica o Poder Executivo autorizado a ...”.

 

Análise mais detida, contudo, indica-nos que a “proposição autorizativa ”não vem apenas envolta na fórmula acima. Ela contém outro elemento fundamental para a sua perfeita caracterização: o vício de iniciativa perpetrado por parlamentar. A “proposição autorizativa” é o caminho que o parlamentar trilha para burlar as normas de iniciativa legislativa exclusiva ou reservada, previstas no § 2º e no § 4º do art. 24 da Constituição do Estado.

 

 

 

II – A QUESTÃO DA CONSTITUCIONALIDADE

 

 

 

Os defensores da utilização de “proposições autorizativas” reconhecem que não existe expressamente a possibilidade de sua utilização. Todavia, argumentam que tal proposição não possui nenhuma inconstitucionalidade. Lembram, por um lado, que, se inicialmente há vício de iniciativa, esse vício é sanado com o ato de sanção e, por outro, que ela, se convertida em lei, não obriga a sua execução por parte do Chefe do Poder Executivo.

 

A tese da convalidação do vício de iniciativa pela sanção é acolhida por renomados juristas. Manoel Gonçalves Ferreira Filho assevera que:

 

“Na doutrina, Themístocles Brandão Cavalcanti e Seabra Fagundes, Pontes de Miranda e José Afonso da Silva, por exemplo, sustentam a convalidação” (Do Processo Legislativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 211).

 

Seabra Fagundes, lembrando que a iniciativa não é a única manifestação de vontade do Chefe do Poder Executivo no curso do processo legislativo, leciona, com a persuasão que lhe é peculiar:

 

“Acresce, como circunstância de relevo, que a segunda manifestação de vontade [a sanção] tem lugar ainda no curso de elaboração da lei, não vindo convalidar um ato já consumado, mas sim intervindo nele quando ainda em processamento, o que, ao invés de significar a confirmação de um ato claudicante, vale por colaborar, antes que ele em lei se converta, na retificação de deficiência ou se não do seu processo elaborativo” ( Lei – iniciativa do Poder Executivo – Sanção – Delegação e Usurpação de Poderes. Revista de Direito Administrativo, nº 72, p. 424).

 

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, consolidou esse entendimento na famosa Súmula nº 5, que firmou clara posição no sentido de que “a sanção do projeto supre a falta de iniciativa do Poder Executivo”.

 

Ante ponderações tão consistentes, não haveria como contestar a constitucionalidade das “proposições autorizativas”. Contudo, o avanço das reflexões sobre esse tema alteraram a posição inicialmente a favor da constitucionalidade dessas proposições. O marco divisor de águas foi o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Representação nº 686-GB, que acolheu o voto do Relator Ministro Evandro Lins e Silva. O Relator resumiu o seu ponto de vista de forma lapidar:

 

“O fato de lei impugnada ser meramente autorizativa não lhe retira a característica de inconstitucionalidade, que a desqualifica pela raiz”.

 

O Supremo Tribunal Federal, a partir de então, tem reiterado sistematicamente o entendimento esposado na Representação nº 686-GB. Em feliz síntese, o Ministro Celso de Mello, já sob a égide da Constituição de 1988,  ponderou:

 

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (ADIMC-724-RS, Julgamento em 07.05.1992 – Tribunal Pleno).

 

O efeito da alteração de posição pelo Excelso Pretório, no tocante à constitucionalidade das leis oriundas de proposições autorizativas, foi a superação da Súmula nº 5, que não mais é observada pelo mais alto Tribunal do sistema judiciário pátrio.

 

A doutrina igualmente acompanhou a alteração de posição do Supremo Tribunal Federal, na questão da constitucionalidade das leis engendradas por “proposições autorizativas”. Manoel Gonçalves  Ferreira Filho leciona que:

 

“Em realidade, o direito que o Executivo exerce ao propor leis é propriamente uma função exercida em favor do Estado, representante do interesse geral. Em vista disso, é bem claro que não pode ele concordar com a usurpação daquilo que rigorosamente não é seu. E, sobretudo, como assinalou José Frederico Marques, a concordância do Executivo em que uma função a ele delegada seja exercida pelo Legislativo importa em delegação proibida pela lógica da Constituição, a menos que esta expressamente permita” (Do Processo Legislativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 213).

 

 

 

Argumento importante a destacar é que o reconhecimento da inconstitucionalidade das leis autorizativas vem prestigiar o pleno exercício da cidadania. Como não é mais reconhecido o ato de sanção como abalizador da constitucionalidade das leis derivadas de proposições com vício de iniciativa, abriu-se ao cidadão a possibilidade de questionar a constitucionalidade de qualquer lei por inobservância do devido processo legislativo. Moniz Aragão assevera oportunamente:

 

“E, sendo a mensagem-proposta do Poder Executivo condição precípua de validade para a tramitação do projeto, é óbvio que a sua ausência importa em desrespeito às normas constitucionais de procedimento e acarreta a inconstitucionalidade de leis assim confeccionadas” (Poder de iniciativa e inconstitucionalidade da lei. Revista de Direito Administrativo, nº 64, p. 356/357).

 

Dúvida não há, pelo exposto, que hodiernamente a doutrina jurídica e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não reconhecem a constitucionalidade de uma lei gerada por “proposição autorizativa”. Tais proposições, e as leis delas geradas, são manifestamente inconstitucionais.

 

 

 

III – DA EFICÁCIA DAS LEIS GERADAS POR PROPOSIÇÃO AUTORIZATIVA

 

 

 

É consenso, entre todos os doutos, que a inconstitucionalidade da lei não se presume. Ao contrário, por razão de ordem pública, sempre se presume a constitucionalidade das leis. Deste modo, a inconstitucionalidade precisa sempre ser declarada pelo órgão estatal competente.

 

Enquanto não há a declaração de inconstitucionalidade, uma lei, mesmo que todos lhe apontem as marcas indeléveis de ofensa à Carta Magna,  existe e, em tese, é eficaz para produzir efeitos. Na lição de Moniz Aragão:

 

“Todos os atos praticados sob o império da lei inconstitucional e enquanto não for exercida pelo Senado a sua atribuição de suspender-lhe a eficácia, são válidos” (Poder de iniciativa e inconstitucionalidade da lei. Revista de Direito Administrativo, nº 64, p. 366).

 

Ressalte-se que a atribuição do Senado Federal de suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal encontra-se prevista no inciso X do art. 52 da Constituição da República Federativa do Brasil.

 

 

 

 

IV – A TESE DA NÃO OBRIGATORIEDADE DE EXECUÇÃO

 

 

 

Cumpre esclarecer que a “lei autorizativa”, entendida como aquela oriunda de uma proposição de igual natureza, não tem a característica de ser de execução facultativa por parte do Poder Executivo. Tal afirmação não encontra nenhuma justificação constitucional, legal ou jurídica. E por razões óbvias, uma lei com vício insanável em sua formação não pode ostentar condição privilegiada no ordenamento jurídico e muito menos gozar da faculdade de ter a sua execução condicionada aos humores ou conveniências – de qualquer ordem – do Chefe do Poder Executivo.

 

O que ocorre, de fato, é a convergência de interesses dos agentes políticos em defesa da tese da não-executoriedade obrigatória da “lei autorizativa”. De um lado, essa tese é o argumento dos parlamentares que pretendem afastar o patente vício de iniciativa da proposição que gerou tal lei. Do outro lado, o Poder Executivo, com um senso prático extremo, não se opõe que a “lei  autorizativa” seja promulgada e publicada, pois sabe que a mesma é inconstitucional e a aceitação da tese da não-obrigatoriedade de execução dessa lei lhe é conveniente. Caso venha a sofrer qualquer tipo irresistível de coerção para executá-la, irá imediatamente alegar o vício de iniciativa perante o Judiciário para lhe retirar a eficácia.

 

A tese da não obrigatoriedade de execução da “lei autorizativa”, deste modo, é de grande utilidade, mas sem nenhum fundamento jurídico.

 

 

 

V - CONCLUSÃO

 

 

 

As denominadas “proposições autorizativas” são inconstitucionais por macularem regra expressa de processo legislativo atinente à iniciativa e as leis promulgadas, decorrentes desse tipo de proposição, são igualmente inconstitucionais, uma vez que a sua sanção ou promulgação não lhe convalida ou supre o vício de iniciativa.

 

Uma lei derivada de uma “proposição autorizativa”, todavia, é plenamente eficaz e somente pode ter a sua eficácia suspensa ante uma declaração de inconstitucionalidade prolatada pelo Poder Judiciário.